O panorama de doenças raras é desafiador no Brasil e no mundo. Exatamente por atingir um número menor de pessoas, muitas vezes há pouca informação disponível, o que dificulta diagnóstico, acesso a tratamentos e formulação de políticas públicas. Um novo estudo, publicado na revista científica The Lancet, aborda esse cenário na América Latina, com foco no Brasil, Peru e Colômbia, e sugere recomendações de políticas públicas para doenças raras.
Um dos autores, o brasileiro Daniel Wainstock, pesquisador de Direito à Saúde na Georgetown University e PUC-Rio, conversou com Futuro da Saúde e explicou o que motivou o estudo: “Existe uma falta de políticas públicas para doenças raras. O debate de doenças raras e acesso a remédios era quase que um dilema ético. É ético nós comprarmos um remédio que custa um milhão de reais, por exemplo, para um bebê com uma doença rara? Ou seria mais justo direcionar esse dinheiro para uma quantidade maior de remédios para pessoas que tem doenças comuns? […] a grande questão seria justamente buscar formas alternativas de salvar todas as vidas em jogo […] então nós fizemos propostas para avançar no âmbito das políticas públicas e leis”.
Os pesquisadores conversaram com dezenas de pessoas que vivem com doenças raras ou que possuem filhos com essas condições, além de ONGs especializadas, com o intuito de entender os maiores desafios desse contexto. O autor relatou que a questão “não é só acesso a remédio, eles (os pacientes) sofrem preconceito dos próprios médicos, sofrem muito com a questão de saúde mental […] além disso, falamos com pessoas que não tinham nem o dinheiro para passagem de ônibus para ir até o hospital, quem dirá para comprar um remédio caro”.
Outro problema diz respeito à diversidade de definições sobre o que é uma doença rara, pois cada país possui seu próprio conceito classificatório. No Brasil, por exemplo, uma doença é considerada rara se ela afeta 65 ou menos habitantes a cada 100 mil, enquanto que na Colômbia esse intervalo muda para 2 habitantes a cada 10 mil. Wainstock explica que “essa variedade de conceitos intensifica um cenário de dificuldades para pesquisa, para troca de remédios entre os países e para advocacy”.
Principais recomendações de políticas públicas para doenças raras
Dentre as sugestões para a América Latina como um todo, o estudo ressaltou a necessidade de padronização do conceito de doenças raras como uma prioridade para eliminar as discrepâncias para parcerias de pesquisa, oportunidades de financiamento e acesso ao mercado. Outra recomendação é a realização de parcerias regionais de pesquisa para colaboração científica e clínica, além do desenvolvimento de um programa regional de registro de doenças raras.
Para o Brasil, o estudo indicou a necessidade de ampliação da triagem pré-natal, de exames e de testes genéticos para diagnóstico de doenças raras no Sistema Único de Saúde (SUS), uma vez que, atualmente, costuma-se levar de cinco a sete anos para conclusão de um diagnóstico, ocasionando gastos e desgastes evitáveis.
A publicação também aponta a importância da criação de um Gabinete de Doenças Raras no Ministério da Saúde para desenvolver planos de ação que abordem os desafios ligados a essas doenças e a questão dos medicamentos órfãos — destinados a doenças raras. Além disso, recomenda o desenvolvimento de um novo processo de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS) para analisar os medicamentos órfãos, sendo que o atual patamar de custo-efetividade para avaliação de tratamentos de doenças raras no Brasil (3 X PIB per capita/QALY) é prejudicial para a incorporação desses remédios.
Por último, Daniel Wainstock também ressaltou a importância das intervenções que não estão focalizadas apenas no âmbito médico de acesso aos remédios, mas também nos determinantes sociais da saúde, como transporte e alimentação. “São coisas que normalmente não são tão óbvias para saúde, mas que aumentam o bem-estar e a saúde no longo prazo […] ou seja, devemos pensar em um auxílio mensal para pais de filhos com doenças raras, transporte público gratuito para essas pessoas irem aos hospitais, isenção dos remédios órfãos de impostos para abaixar os preços, são vários pontos. Temos tido avanços importantes, mas tem espaço para avançar muito mais e ampliarmos esse acesso”.
Cenário brasileiro
Quanto ao cenário de doenças raras no Brasil, o estudo indica houve avanços, como o lançamento da Portaria nº 199, em 2014, com os marcos da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras e das Diretrizes para a Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do Sistema Único de Saúde. No entanto, falta a implementação da Portaria por conta da falta de financiamento e de cumprimento normativo, uma vez que as portarias do Ministério da Saúde não têm status legal. O estudo também cita a Frente Parlamentar de Enfrentamento às Doenças Raras e a Comissão Interministerial de Doenças Raras, mas aponta que ainda faltam mais políticas públicas e que algumas leis que já existem apresentam inconsistências.
Ainda, a pesquisa ressalta a Casa Hunter, organização de defesa de pacientes com doenças raras, a qual ajuda a promulgar leis para essa comunidade. A organização também possui projetos como a Casa dos Raros, uma instituição voltada para o fornecimento de cuidados, pesquisa e treinamento em doenças raras, além de oferecer ajuda financeira para aqueles pacientes de baixa renda, assistência psicológica, apoio para o acesso ao diagnóstico e tratamento.
Ao fazer um balanço, Daniel Wainstock comentou que o cenário no Brasil, em relação à América Latina, é positivo, destacando o advocacy brasileiro e o trabalho da Casa Hunter. Entretanto, o autor evidenciou a carência de mais centros especializados em doenças raras no Brasil. “Os centros que existem estão em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais… na região Norte, por exemplo, não tem nenhum”, indicou.
Fonte: Futuro da Saúde